Eu sei que a gente se acostuma.
Mas... não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de
fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista... logo se acostuma a
não olhar para fora.
E porque não olha para fora... logo se
acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas... logo se
acostuma a acender mais cedo a luz.
E porque à medida que se acostuma... esquece
o sol... esquece o ar... esquece a amplidão.
(...)
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e
ouvir no telefone... Hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas... sem receber um
sorriso de volta.
A ser ignorado... quando precisava tanto ser
visto.
(...)
A gente se acostuma a coisas demais... para
não sofrer.
Em doses pequenas... tentando não perceber...
vai afastando uma dor aqui... um ressentimento ali... uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio... a gente senta na
primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada... a gente só
molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro... a gente se consola
pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que
fazer... a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sempre sono
atrasado.
A gente se acostuma... para não se ralar na
aspereza... para preservar a pele.
Se acostuma... para evitar feridas...
sangramentos... para esquivar-se da faca e da baioneta... para poupar o peito.
A gente se acostuma... para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta... e que... de tanto
acostumar... se perde de si mesma.
(Marina Colasanti)
“É... a
gente se acostuma mesmo! Mas... não devia!!”
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