quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Eu sei... mas não devia...


Eu sei que a gente se acostuma.
Mas... não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista... logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora... logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas... logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E porque à medida que se acostuma... esquece o sol... esquece o ar... esquece a amplidão.
(...)
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone... Hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas... sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado... quando precisava tanto ser visto.
(...)
A gente se acostuma a coisas demais... para não sofrer.
Em doses pequenas... tentando não perceber... vai afastando uma dor aqui... um ressentimento ali... uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio... a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada... a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro... a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer... a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma... para não se ralar na aspereza... para preservar a pele.
Se acostuma... para evitar feridas... sangramentos... para esquivar-se da faca e da baioneta... para poupar o peito.
A gente se acostuma... para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta... e que... de tanto acostumar... se perde de si mesma.

                                                                                                                 (Marina Colasanti)

“É... a gente se acostuma mesmo! Mas... não devia!!”

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